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Até que a morte nos separe

Dar pancada em mulheres após sermos traídos é compreensível? Parece que um Tribunal acha que sim.   Está na ordem do dia um acórdão do Tribunal da Relação do Porto no qual, sem pretensão de ser exaustivo ou tecnicamente muito rigoroso, o Tribunal decide aplicar uma pena mais baixa a um homem

Violência doméstica

Dar pancada em mulheres após sermos traídos é compreensível? Parece que um Tribunal acha que sim.

 

Está na ordem do dia um acórdão do Tribunal da Relação do Porto no qual, sem pretensão de ser exaustivo ou tecnicamente muito rigoroso, o Tribunal decide aplicar uma pena mais baixa a um homem que agrediu violentamente uma mulher – não a terá matado por acaso. A páginas tantas o Tribunal considera que a sociedade vê “com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher. Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida”.

 

Esta decisão pode ser abordada de vários ângulos: A mais óbvia será o ponto de vista técnico. Se a decisão teve em consideração os mais elementares princípios jurídico-penais e as finalidades das penas. Um outro ponto de vista será o da consideração do princípio da igualdade: E se fosse ao contrário? A decisão seria igual? É que a “linguagem” utilizada pelo Tribunal parece, de facto, fazer passar a ideia de que é mais grave o adultério perpetuado por mulheres do que por homens, o que, não pode deixar de constituir enorme perplexidade e ser rotulado, justamente, de uma decisão profundamente machista.

 

Mas para mim o ponto de vista que mais me interessa aqui analisar é mesmo o mental. Em primeiro lugar, todos estaremos de acordo com a monstruosidade que é a agressão. Qualquer agressão é sempre injustificada. Porque a mulher (ou o homem) livremente decidem ter relações sexuais com outra pessoa parte-se para a agressão ou para a morte? Diria que o adultério poderá ser causa de fim de casamento. Constituirá, sem dúvida, uma das causas previstas no código civil de rutura definitiva do casamento e legitima o divórcio unilateral sem mais. Mas nunca pode legitimar nem a ameaça nem a agressão. E do ponto de vista técnico necessidades de prevenção geral mas também especial (perigo de reincidência) levariam a uma pena mais elevada do que mais reduzida.

 

Violência Doméstica

O problema está, antes de mais, na forma como se observam as relações amorosas: A ideia de posse, de propriedade. A própria designação: “Posso levar ao aniversário a MINHA namorada?”. As pessoas têm nomes. Não são nossas. Ainda no outro dia trocava ideias sobre o assunto: As pessoas querem obrigar as outras pessoas (ainda mais grave: as pessoas com quem se relacionam alegadamente de forma amorosa!) a fazer determinadas coisas por “decreto-lei”. É inacreditável os casos de pessoas que não podem simplesmente estar com os amigos, não podem ir beber café com uma amiga, não podem marcar um almoço com uma ex-colega porque o parceiro ou a parceira não permitem. Permitir? Mas alguém é dono de alguém? Não me passaria pela cabeça dizer à Mariana se pode ou não pode ir de férias com uma amiga ou se deve ou não deve ir acampar com os escuteiros. Que tenho eu a ver com isso? Quem sou eu para decidir isso? Mas a vida é minha? Normalmente as pessoas que assumem um comportamento possessivo assumem-no no essencial por uma insegurança quase patológica – no fundo acham que todas as outras pessoas são melhores que eles próprios. E, claro, por uma dependência da manutenção – custe o que custar – dessa relação.

 

Uma relação amorosa é por natureza um compromisso. Uma plataforma que acrescenta algo. A pessoa A tem a sua vida que deve ser suficientemente preenchida para não depender a nenhum nível da pessoa B que deve ter o mesmo procedimento. Depois existe um espaço de relação que é um espaço de liberdade. Claro, de confiança e de respeito. Mas um espaço de liberdade. Que começa, acaba quando uma das partes quer. E que tem entendimentos, espaços e procedimentos que ambas as pessoas concordam – e que podem mudar ao longo do tempo. Se determinada pessoa toma a sua decisão – livre – de ter uma relação sexual com uma terceira pessoa cabe ao outro parceiro tomar uma de duas decisões: Continuar na relação ou terminar a relação. Não legitima por um segundo a violência.

 

E sobre isto introduzir um último tópico: As relações sexuais no contexto de um namoro ou de um casamento também não são obrigatórias. Nem a frequência, nem a intensidade, nem a diversidade. Forçar uma relação sexual num contexto de namoro é crime: Chama-se violação.

 

As pessoas deveriam parar com a ideia obcecada e quase ditatorial com que observam as relações. Talvez se compreendessem um pouco mais essa ideia nos poupássemos enquanto sociedade a crimes gravíssimos como o decidido por este Tribunal. E, ato contínuo, nos pouparíamos a sentenças – e sobretudo aos fundamentos que motivam a sentença – absolutamente inacreditáveis como aqueles que agora foram trazidos a lume.

 

tmgmendonca@gmail.com

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