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O Guião C – Casamento, Casa Própria, Carro, Crianças, Curso e Carreira. A quem serve?

A geração dos meus pais (60 anos) foi uma geração muito bem-sucedida. Conseguiram coisas muito importantes: É a geração da mobilidade, com a saída das “terras” para explorar oportunidades diferentes nos grandes centros urbanos. É, talvez, a primeira geração “proprietária”. E, beneficiando da estabilidade proporcionada por carreiras longas e dedicadas

Guião C

A geração dos meus pais (60 anos) foi uma geração muito bem-sucedida. Conseguiram coisas muito importantes: É a geração da mobilidade, com a saída das “terras” para explorar oportunidades diferentes nos grandes centros urbanos. É, talvez, a primeira geração “proprietária”. E, beneficiando da estabilidade proporcionada por carreiras longas e dedicadas à mesma empresa puderam como nunca antes investir nos filhos. Trocou-se a ideia de muitos filhos por menos filhos mas com mais “qualidade”. Proporcionaram-nos qualificação e aprendizagem como nenhuma outra geração tinha tido. Nesse sentido devo dizer para ser totalmente honesto que, em linhas gerais, o plano dessa geração funcionou.

 

O modelo de felicidade que nos foi apresentado assentou na seguinte premissa: Com mais qualificação vão ter empregos melhores e ganhar ainda mais dinheiro. O resto, que já tinha resultado era para manter. O Guião C: Casar, Casa, Carro, Crianças, Curso e Carreira. O problema foi que com a epidemia de licenciados perdeu-se o fator diferenciador de ter uma licenciatura. A enorme oferta de mão-de-obra muito qualificada fez com que, naturalmente, o preço para trabalhar descesse, isto é, os salários fossem mais baixos. E aqui começa o paradoxo: A geração mais qualificada de sempre é a primeira com menos poder de compra que a anterior. Pior, se formos rigorosos, é uma geração que começa no “vermelho” e que só passado muitos anos atingirá o breakeven. Quer dizer: Se começamos a trabalhar cinco anos mais tarde que a geração anterior são cinco anos que não recebemos salário e que gastámos dinheiro (propinas, manuais, etc.). Ou seja: Se tivéssemos arranjado um emprego a receber 600€ líquidos aos 18 anos, começamos 42.000 abaixo de zero (600€ X 14 Meses X 5 anos). Se imaginarmos que investimos (ou os nossos pais investiram) 8.000€ entre propinas, livros, material de escritório na nossa formação começamos 50.000€ abaixo. O que quer dizer que se com o curso conseguirmos um emprego a receber 1.100€ líquidos, são mais 500€ do que o que obteríamos no trabalho sem curso superior. Dividindo os 50.000€ que começamos abaixo do zero pelos 500€ de diferença precisamos de 100 meses para chegar ao break-even. Cerca de 8 anos e quatro meses depois atingimos o zero e a partir daí começa o retorno do investimento. Ou seja, se o curso iniciar aos 18 e terminar aos 23 só aos 31 estaremos a começar do zero. Isto quando existe emprego e um emprego que proporcione ganhos de 1.100€ líquidos. O que está longe de ser a regra. A resposta tem sido, invariavelmente, investir mais e mais em qualificação. Mestrados a banalizarem-se, doutoramento ao alcance de maioria das pessoas.

 

Por outro lado a ideia de carreira não é apelativa. Esta é a geração da mobilidade. Da liberdade. Da democratização das viagens, do Erasmus, da aldeia global. A geração que pela primeira vez pode falar com 5.000 pessoas em poucos anos, visitar alguns países. Que quer experimentar coisas diferentes. Se o curso não se apresentou como solução para melhores rendimentos a verdade é que a expressão carreira causa urticária em muitas pessoas. Este mix de desprendimento relativamente a fazer a mesma coisa todos os dias com taxas de desemprego jovem elevadas e de emprego jovem precário fora de órbita está na base desta corrente empreendedora. Que é do melhor que este país tem. Que é do melhor que o mundo tem. Porque abala os alicerces de uma sociedade bafienta e de um guião de sociedade que resultou durante muitas dezenas de anos mas que hoje não da resposta aos anseios e expetativas desta geração.

 

Foi-nos dito que comprar casa era a opção mais sensata. Mas será? Se uma casa for avaliada em 200.000€ terei que dar de entrada 40.000€ e emprestam-me 160.000€. Pagarei para papeladas uns bons 20.000€. E depois os 160.000€ que peço emprestados terei que os restituir num empréstimo cujo prazo de vencimento acaba nas calendas e a troco de um juro inacreditável. Pagarei, talvez, 260.000€ ao fim de 30 anos. Se juntarmos IMI’s ou condomínios talvez roce os 300.000 mais a entrada mais a papelada. Talvez por uma casa de 200.000€ pague cerca de 350.000€ para, enfim, ter a minha propriedade aos 60 ou 70 anos. Mas se a ideia é liberdade e flexibilidade para fazer qualquer coisa em qualquer lado (por contingência – falta de oportunidades ou por gosto – desejo de trilhar o mundo) de que me adianta o imóvel?

 

O carro já significou, em tempos, símbolo de sucesso. Mas hoje quase vomitamos quando olhamos para a A5 às seis da tarde. Não há estacionamento nas grandes cidades, demoramos horas e horas a fazer pequenos trajetos. Perdemos, facilmente, duas horas por dia no trânsito. 20 horas em 10 dias. 40 horas em 20 dias. São quase dois dias inteiros em cada mês de trabalho! Se fecharmos os olhos que bom seria irmos de bicicleta ou a pé para o trabalho em vez de conduzirmos o carro.

 

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Quanto a casar e às crianças a verdade é que pelo menos a procrastinação é mais evidente. A emancipação é apenas possível muito mais tarde. Lá para os 30 anos. O casamento enquanto um contrato e os investimentos astronómicos na boda parece não serem grande atrativo em especial para uma geração amante da informalidade. O conhecimento de novas culturas, experiências e posicionamentos em face do instituto do casamento assim como o rompimento com um conjunto de preconceitos e dogmas serviram para uma progressiva perda de popularidade do matrimónio. O divórcio deixou de ser visto como algo “do outro mundo” para ser encarado como um desfecho relativamente normal – mesmo que não desejável – do ciclo de casamento. A verdade é que hoje se conhecem 100 x mais pessoas o que faz aumentar as comparações e, por consequência, a ideia de alternativa. Sobre as crianças, estudos indicam investimento na casa dos 200.000€ até aos 21 anos de uma criança. É o principal investimento de uma vida. A canalização de uma fatia considerável do provavelmente magro orçamento de um casal com 30 ou 35 anos (ainda a recuperar o investimento feito em educação) é desincentivadora. O número de filhos por casal tem, também por isso, caído a pique. Além disso, voltando ao ideário de mobilidade a verdade é que as crianças podem desencorajar essa ideia: Por questões de ordem prática (ir com um filho de dois anos dar uma volta de seis meses à Ásia é difícil) mas também por questões financeiras (as despesas fixas aumentam e a necessidade de um rendimento proveniente de um trabalho standard também).

 

Existe hoje uma parte substancial desta geração que continua a seguir o Guião C. Por “imposição” da sociedade, por medo de fazer diferente ou por ausência de reflexão sobre os caminhos alternativos. Em casos, infelizmente, mais residuais, por opção de felicidade. Para muitos continua a ser uma loucura pensar de forma diferente e idealizar a vida de forma diferente. Estas pessoas exigem respeito dos outros pela compreensão da opção por esta escolha de vida. Mas não demonstram, muitas vezes, o mesmo respeito por quem escolhe fazer diferente. Mas o pior está que quem optou por este guião acho que isto seria um plano base. Quer isto e mais qualquer coisa. Quer endividar-se numa casa e num carro mas ter disponibilidade financeira para abrir um negócio. Quer gastar 500.000€ em dois filhos mas quer ir fazer 3 viagens por ano. Seguir este guião C não é um plano base: É um plano premium.

 

É tão lógico seguir o guião c como não seguir. Quem seguir tem vantagens e desvantagens e o mesmo na outra opção. O ponto de “depressão” está em passado uns tempos considerar-se que o guião c é poucochinho. E isso preocupa-me bastante. É importante manter alguns fatores protetores que permitam pelo menos fazer algumas trocas a meio caminho. Não me querendo meter na decisão de celebrar um típico casamento monogâmico com direito a crianças cada vez me parece mais que será prudente uma gestão financeira cuidada de forma a poder bater com a porta (se isso trouxer felicidade) à carreira. Optar por coisas diferentes. Talvez nesse plano de prudência financeira optasse por evitar endividamento com casa e carro.

 

O que me custa mais é a intolerância da sociedade à diferença. A verdade é que se uma mulher aos 30 anos não tiver filhos vai ouvir mil vezes a pergunta: Então e os filhos? Porque não tens filhos? Mas não oiço ninguém perguntar a uma mulher de 30 anos com um ou dois filhos: Já tiveste filhos?? Porquê filhos? Isso é um grande investimento. Da mesma forma o tipo que aos 30 anos acumula já 3 ou 4 experiências profissionais ou que se despede uma empresa do estado para ir fazer uma coisa qualquer é um maluco. Tem que responder ao questionário social para aferir da sua possível inimputabilidade por anomalia psíquica. Mas não vejo ninguém chamar maluco ao Zé que está a trabalhar desde 1988 na mesma empresa. E já não entro nas questões dos relacionamentos pessoais: Quebrado o tabu das relações homossexuais, para quando o encarar com normalidade das relações poligâmicas ou pelo menos abertas? Ou, mais simplesmente, alguém que quer ficar “sozinho” o resto da vida? Mais decisivamente, para quando encarar-se com normalidade a opção por uma formação alternativa à académica? Mais profissional ou mais artística?

 

Todas as pessoas devem ser livres para optar. Eu cá por mim prefiro o Guião L: Liberdade!

 

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